Carta Aberta.
"A carta aberta é um gênero textual com função de direcionar alguma mensagem, questionamento ou solicitação de determinado indivíduo para alguma pessoa ou organização de reconhecimento público."
"A estrutura desse gênero se assemelha às das cartas pessoais, mas possui um caráter argumentativo".
Não as que vejo por aí. As que consumi nesse adorável mundo de redes sociais, em especial nosso amigo YouTube, são cartas para personagens. Representações. Um pai, no caso do youtuber Tropia. O próprio vazio, no caso de Ludoviajante. São cartas pessoais, livres de qualquer argumentação, recheadas de sentimento.
Portanto...
Carta aberta a você. Pessoa que me faz sofrer constantemente.
Você, que teve este fardo em péssima hora. Antes mesmo de ter um cérebro completo.
Você, que faz com que tudo gire ao seu redor.
Você. Você.
Não sei mais quem você é.
Talvez saiba. Você é aquela pessoa.. inteligente, extrovertida, conhecedora de pautas sociais. Defensora dos oprimidos... Os oprimidos pela sociedade. O oprimido pela sociedade aqui, porém, tornou-se também oprimido pela pessoa que mais deveria confiar. A defensora de pautas sociais.
A que, em casa, usa a palavra "viado" como ofensa. A que acha veganos "loucos". A que não sabe nada sobre pessoas transgênero.
A pessoa que fui obrigado a deixar de amar. Mesmo tão jovem...
Falando diretamente com você. Diga a verdade. Você nunca reconheceu que estava errada. Você nunca pensou em tudo o que disse e concluiu que era, sim, uma pessoa inconsequente. Que gira a mesa (que aqui é a discussão) para pegar as cartas para si (cartas essas, a posição de vítima).
Diga a verdade. Toda santa vez que me faz chorar, desejando a morte porque, com você, não há como conversar, você só pede falsas desculpas para passar de "pessoa que se importa com o doente". Porque você sabe que estou doente. Mas nunca reconheceu o erro. Acredita, no fundo, e fielmente, que "não fez nada demais".
Vou te dizer o que fez. O que faz. Com frequência.
Você não deve se lembrar. Nunca lembra. Não lembra porque, para você, foi mais um dia comum, oprimindo. E para mim também foi mais um dia. Sendo oprimido.
Foi um dia incrível. Para mim, um dia incrível não precisa de muito. Foi um dia com amigos, cheio de sorrisos. E ao final dele? Dor. Você me disse coisas horríveis, de que não consigo me lembrar agora (porque é isso que traumas fazem com as pessoas). E estragou meu dia ali. Fui dormir, com um desejo de morte no peito. Me arranhei, me bati, me oprimi.
Em uma hora, você conseguiu estragar um dia... mágico. Você, uma pessoa só... Estragando um dia inteiro.
Há um tempo, escolhi um dia para contar à minha avó que sou transgênero. E você concordou. Mas ao meio-dia você disse "Vamos sair". E, fora de casa, perguntava "Você se sente pronto?", em um tom que na verdade exalava "Não esteja pronto e me deixe viver sem ser relacionada à sua imagem". Você me chamou de egoísta, porque eu só pensava em me assumir, e não pensava na família que diria a você que é "uma má pessoa por me deixar seguir essa vida".
Eu sou egoísta. Não você, que prioriza seu medo de ser mal falada, ao invés de minha doença que se desenvolve ao sofrer com tamanho fardo.
Em todas as vezes (e há muitas mais), fiquei calado. Não me abri. Não disse nada. Pois você é um caso perdido. Depois de me ver ali, calado e transbordando lágrimas... Com os olhos fixos em um lugar qualquer... Aí me pede que fale. Implora. Diz "É, fazer o que, eu nunca acerto uma. Estou sempre errada", como se fosse me fazer ter pena de você. Você implora por minha voz. Para quê?, eu me pergunto. Para começar a gritar coisas horríveis de novo? Para girar a mesa? Roubar descaradamente as cartas? Pois fique com tudo.
A posição de vítima, a discussão (que deixo que tome como monólogo), a razão. Fique com minha voz na sua cabeça. Minha opinião, que prefere que não exista. Engula. Cuspa, depois, de forma distorcida e caluniosa.
Eu fiquei em silêncio... muitas e muitas vezes.
Uma vez surtei. Gritei, enlouqueci. E ao começar a me bater, desesperado como um rouxinol espetado bem no peito... Você me bateu. Você me oprimiu. Você disse "Se for para se mutilar, deixa que eu mesma faço."
Você me bateu. Porque eu estava sofrendo.
Outra vez, ao te perguntar "Você acha que sou uma pessoa ruim?", você girou a mesa. "É uma pessoa ruim para si mesmo", começou. E desenrolou o monólogo até chegar nas clássicas: "Estou trabalhando por nós", "Você não me ajuda", "Você é difícil de entender". Mas não foi isso que eu perguntei, foi? Como, eu gostaria de saber, tudo isso responde à minha pergunta, que certamente não era só uma pergunta, e sim um sentimento de culpa e preocupação acerca de ser uma pessoa ruim?
Você me faz sentir uma pessoa ruim. Me chama de egoísta... narcisista... fechado, introspectivo, exigente...
Você me confunde. Você diz, com a maior entonação do mundo, que está deixando de trabalhar para me levar ao psicólogo. Você repete e repete o quanto gasta comigo.
E espera, contrariando todas as comprovações científicas que afirmam que isso gera sensação de culpa no jovem, que eu não me sinta culpado.
Pois eu me sinto.
Você não tem a mínima noção, não é? Não tem ideia. Nenhuma ideia de que, entupido com suas reclamações, chego a cogitar fingir. Eu cogito, constantemente, fingir estar bem e não precisar de psicólogo. Dizer que era mesmo só um momento ruim. Comprometer minha saúde mental por você.
Eu cogito fingir ser cisgênero. Dizer que na verdade não sou um garoto. Sempre serei garota, afinal. Me vestir como tal. Ser sufocado por cabelos compridos...
Porque desgasta. Desgasta, depois de tudo isso, ter de ouvir "Vou te arranjar um trabalho para não ter que ver essa sua cara deprimente toda hora".
Hoje. Hoje, depois de uma peça incrível sobre transgeneridade. Nunca fui a um teatro. Sou apenas um jovem. Não me levantei para aplaudir. Não sou uma pessoa de levantar. Ao sair, você me disse "Que afronta, todo mundo levantar, menos você. Acha que a peça não vale a pena? Gosta de chamar atenção."
Você não sabe o que se passa pela minha cabeça em dois segundos. Uma imagem de todos ali, pessoas trans lutando pela causa, murmurando que sou o típico trans que não aprecia a arte trans. Um escroto. Uma pessoa ruim.
E ao me ofender por ser acusado dessa forma, você agiu como se não estivesse errada. E girou a mesa de novo.
"Não dou uma dentro, não é?"
Não, você não dá. Você diz coisas horríveis, depois finge e diz coisas doces (tão doces a ponto de me fazerem vomitar), e age de forma mais horrível ainda. Você me faz pensar em suicídio. Me dá presentes caros para depois me privar de liberdade.
Você me confunde tanto... Não me deixa nem saber se posso ou não sentir algo por você, sempre com medo de me machucar de novo. Não posso nem contar a você como me sinto em relação a você, pois teria algo para usar contra mim.
"Se cuida, te amo."
Seu amor me destrói.
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