De dia, sorvete; de noite, sopa.

"De dia tomo sorvete
 de noite tomo sopa"


Segundo meu psicólogo, doutor Vinícius, esta é uma frase de Paulo Lemisnki, o qual ele diz não gostar muito.
   Começou a sessão retrasada (dia 18, sexta-feira) com a pergunta: "Gosta de Paulo Leminski?" Não, não sou um grande fã, assim como ele. 
   "Há uma obra dele, falando sobre Curitiba: 'de dia tomo sorvete, de noite tomo sopa'. Semana passada você veio aqui de sobretudo, e agora está de bermuda", e sorriu.
   De fato, o clima de Curitiba é, no mínimo, estranho. Até a última quinta-feira estava um calor de até 30°C, e agora somos recebidos com um frio de 13°C e chuva.
   Num geral, converso mais com meu terapeuta sobre obras literárias, arte e política do que sobre meus problemas mentais. Prendo-o no meu papo cult até onde conseguir. Não adianta muito, no final ele sempre me faz voltar ao assunto "como você está?", ou faz uma metáfora relacionando o papo cult com minha saúde mental.
   Não faço a menor ideia do que conversei com ele naquela sessão, mas lembro bem da frase de Paulo Leminski. Entrei no carro pensando nela, comi um hambúrguer pensando nela, e passei a semana seguinte observando as variações do clima enquanto pensava repetidamente em "de dia tomo sorvete, de noite tomo sopa".
   Os dois dias seguintes, sábado e domingo, foram divertidos. Descrevi-os aqui. A próxima semana decorreu, totalmente repetitiva, mas tolerável. Prova Paraná, teste de altas habilidades, maquiagem artística...
   E outra sexta-feira chegou.
   Outra sessão de terapia chegou.
   Também a última.
   Minha mãe, devido à falta de respeito de sua gerente tóxica, saiu do emprego. E o plano de saúde que era pago pela empresa chegou ao fim.
   Na recepção, esperando meu horário para ser atendido, desenho um picolé (sei lá por que, talvez por ter tomado muitos ao longo da semana; só estava treinando perspectiva) e penso no que dizer na terapia. Decido deixar o tempo decidir.
   Então, em meio ao "Como você está?", "E sua mãe?", etc, ainda desenhando, penso: "Picolé... Sorvete... Sorvete... Sopa."
   O desenho torna-se, então, um picolé com um "14:00" escrito em seu palito, e (a tentativa de) uma sopa, com...



— Qual você acha que é o horário padrão para jantar? — o interrompo em meio a uma pergunta.
   — Desculpa... — ele franze o cenho, fecha os olhos, sorrindo, e pergunta: — O quê? Eu não entendi. Qual é o horário padrão...
   — Qual é o horário padrão para jantar — repito.
   — Não sei — dá uma espécie de risada baixa. — Depende da pessoa...
   — Em que horário a maioria das pessoas jantam?
   Tenta falar, mas o interrompo:
   — Em que horário você janta? — pergunto finalmente.
   — Olha, depende... É bem variado. Tem dias que eu janto às cinco da tarde.
   — Puta que pariu — franzo o cenho e dou risada.
   — Mas tem dias que eu janto às onze.
   — Tudo bem.
   


   Vinícius já viu artes minhas antes. Pelo menos as visuais (escrita e música, ainda não). Já viu uma água-viva, uma releitura de O Grito, outra releitura do mesmo quadro, desta vez mais elaborada. Então, não me preocupei em fazer aquele desenho simples.
   Em escrever, ao lado da cumbuca de sopa, da colher e da cestinha de pão, "22:30" e lhe entregar.
   Foi minha última sessão. Um até logo, eu espero, e não um adeus.
   Ele me deu seu número, caso eu opte por fazer um plano particular, com maior duração, etc.
   Só espero que, quando puder ter um terapeuta de novo, seja ele, ou o mínimo do que ele é (vulgo uma pessoa punk que respeita a diversidade e oferece assuntos interessantes).



— Toma — arranco a folha do caderno e lhe entrego.
   — Olha, ficou muito bom — pega a folha e a observa.
   Ele ri.
   — De dia tomo sorvete, de noite tomo sopa. Claro. Só faltou um "Paulo Leminski" — disse, sorrindo o tempo todo. — Me dê a honra de sua assinatura.
   — Claro. Vou colocar na frente, tá?
   — Sim. O artista tem que ser visto. Obrigado — pousa a folha, agora assinada, sobre a mesa. — Pensa no que eu disse. Aí nós poderíamos ajustar os horários, o que ficar melhor pra você.
   — Tudo bem. 
   — Nosso tempo acabou por hoje — se levanta, e eu espelho seu movimento.
   Me dirijo até a porta, com a bolsa carteiro no ombro.
   — Seu celular — ele pega o aparelho da poltrona e me entrega.
   — Ah, eu vivo esquecendo as coisas — sorrio.
   — Alex — diz meu nome e depois pausa, como sempre. — Fique bem.
   — Claro.
   Abro a porta e saio.
   — Até depois.
   — Até — ele faz um V com os dedos e fecha a porta.
   


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