Medo da Vida

— Do que você tem medo? — A criança me pergunta, e seus amigos param tudo o que estão fazendo para ouvir a resposta.


   Eu tenho medo de muitas coisas. Poderia dizer que sou uma das pessoas mais medrosas que você conhece. Mas não medroso como a maioria das pessoas. 


   Eu sei do que tenho medo. Medo de filhos da puta e seus padrões. Mas como explicar isso pra crianças de sete anos?


   Enquanto essas crianças esperam respostas como "Medo de escuro", ou "Medo de monstros", o que eu, um adolescente de 17 anos, deveria responder?


   Eu não tenho medo de altura. É reconfortante estar no alto. Eu não tenho medo de brinquedos perigosos. Ao menos eu sinto algo: adrenalina. Não tenho medo de drogas. Eu fumo maconha, afinal. Não tenho medo de insetos. Já até colecionei uma vez. Não tenho medo do escuro e nem de fantasmas. Sou ateu. 


   Eu não tenho medo de morrer…


   — Eu tenho medo da vida.



   — Ah, para de brincadeira — o questionador me confronta. — Tô falando sério. Você tem que ter medo de coisas assustadoras, não da vida — e franze o cenho.


   — Pois bem. A vida é assustadora. Pra caralho. — E decido fumar um.


   — Minha mãe disse que não pode falar palavrão. E não pode fumar também. — Disse uma garota de cabelos crespos, os mais brilhosos que já vi, pele negra e semblante sério.


   — É, e vê se dá uma resposta melhor — o pirralho insiste.


   — Hm. — Dou um trago, prendo (não façam isso, crianças), solto. E olho pra garota. — Eu tenho medo da sua mãe. 


   — Mas a minha mãe é legal. Tá, às vezes ela coloca lacinho no meu cabelo e isso é bem chato, mas ela me dá comida. — E continua séria.


   — Hmmm. 


   — Para de ficar de "hm hm hm" e dá uma resposta decente — o garoto empurra minha perna pra lá e pra cá.


   Porra, que saco.


   — Tenho medo da sua mãe — e me inclino pra garota — porque ela diz coisas que são mentiras. 


   — Mas a minha mãe não mente. — Fica mais séria que o normal.


   — Sim, ela mente bastante. Todo dia, quando vai à igreja. Todo dia, quando te diz que isso aqui é ruim — e balanço o beck nos meus dedos — e logo depois acende um cigarro e sopra bem na sua cara. Como se você curtisse passar fumaça. 


   — O que é passar fumaça? — diz o garoto.


   — Mas isso aí é a mesma coisa. — diz a garota.


   Eu fico sem dizer nada por um tempo, ainda inclinado na direção da garota bonitinha. Pelo menos a mãe não é cruel a ponto de alisar seu cabelo. 


   Eu não queria responder nada nesse momento. Estava cansado de tanta pergunta e de me policiar.


   Respiro fundo e me encosto no banco duro.


   Trago, seguro (não façam isso, eu só faço porque quero morrer), solto.


   — Não passe fumaça, é paia, e não, isso não é um cigarro comum. — E respiro fundo de novo. Cansativo pacas.


   — Cara, você é muito chato — diz um garoto que estava quieto até agora. — Você não tem medo de nada normal, não?


   De certa forma as crianças estão certas. A vida não é normal. Então não tenho medo de coisas normais.


   — Eu tenho medo da vida…


   — Ah, você é um pé no saco — começou o garoto implicante.


   — Ah, cala a porra da boca — falei mais alto do que vinha falando até agora. — Eu tenho medo da vida porque nela existem pessoas. E eu tenho medo de pessoas.


   Ficam em silêncio por um momento.


   — Tem medo de mim? — Pergunta a garota. Por um momento, parece que ela se sente mal por ser assustadora. Mas ela não é.


   Sorrio.


   — Não. Você não é assustadora. Tenho medo de pessoas mais velhas. Aquelas que mentem. Aquelas que têm poder. E usam isso a seu favor. Aquelas que exploram. Que nunca saem de seu posto, porque milhares de pessoas exploradas a mantém lá.


   — Uau, eu não tô entendendo nada — diz o segundo garoto.


   Respiro mais fundo do que nunca. Parece até que meus pulmões nunca mais vão liberar carbono.


   Trago, prendo (ah, que se foda, se todo mundo começar a prender, é menos filho da puta no planeta pra contar se foi bom prender ou não), solto.


   — Olha. Eu tenho medo de pessoas porque a maioria delas é má. Não que elas matem ou roubem. Não. Elas só… falam. Falam coisas ruins pra você todo dia. Te dizem o que fazer e o que não fazer, como se você quisesse saber. E depois te xingam ou te batem se você estiver pouco se fodendo pro que dizem.


   — Eu nunca vi isso — disse o chato.


   — Que bom. Muito bom pra você. 


   — Por que você tem medo da vida? — A voz da garota era bem baixa agora. Era uma dúvida genuína. Estava preocupada. Preocupada se teria medo da vida algum dia.


   — Hoje em dia… — e trago de novo, soltando logo depois — a vida se resume a estudar, trabalhar, ter uma casa, um carro, casar e ter filhos. Ter o emprego perfeito, a casa perfeita, a família perfeita… Você tem que ser médico ou advogado. Ou até algo mais desvalorizado, tipo um psicólogo. Até artista você pode hoje em dia. Mas você paga por tudo isso. E não recebe nada depois porque ninguém liga pros seus sonhos.


   Eu olho pro céu cinza devido à industrialização exacerbada. Com traços amarelados que não deveriam estar em um céu normal. Natural.


   — Você não gosta de estudar? Eu também não. — Diz o segundo garoto. 


   — Eu gosto de saber das coisas. — Trago e solto. — Sabia que águas-vivas podem ser imortais?


   — É? Minha professora nunca me contou isso. — A menina sorri muito.


   — Sua professora nunca vai te contar isso. Porque ela também tem medo.


   — Medo de quê? 


   — De você se apaixonar por águas-vivas. De você gostar tanto delas ao ponto de só querer saber sobre elas. E não querer saber qual o valor de x ou o que é proparoxítona.


   — E qual problema em gostar de água-viva? Você gosta. — Parece triste agora. Acho que ela gostou do lance da água-viva.


   Minha garganta dói.


   Respiro fundo.


   — O problema é que você tem que aprender o valor de x. Se quiser trabalhar com águas-vivas, provavelmente vai morrer de fome sem um emprego. 


   Silêncio.


   Acho que devo ir direto ao ponto.


   — Eu tenho medo da vida… — fecho os olhos — porque eu tenho medo de fracassar. Tenho medo da faculdade, porque é difícil. Tenho medo de morrer de fome porque amo águas-vivas e amo pintar. Tenho medo de trabalhar em um escritório e só ter trinta minutos de almoço.


   A essa altura, como eu já imaginava, os dois garotos se concentravam apenas em fazer um castelinho de areia. Mas a garota continuava lá.


   A garota estava… triste.


   — Você tem medo de muita coisa. — Ela sussurra.


   — É, tenho sim. — Respondo no mesmo tom.



   — Do que mais você tem medo? 


   Fecho os olhos.


   — Tenho medo de nunca ser feliz. Tenho medo de nunca ser amado. Tenho medo de nunca me importar. Tenho medo de, mesmo depois de morto… de que pessoas ainda sejam… tristes.


   Ela arregala os olhos.


   Minha visão fica turva. E minha consciência não está mais aqui, no parque.


   Ela balança minha perna.


   — Moço? Moço. — Parece desesperada.


   — Fala.


   — Pode tirar um medo da sua lista. — Dá um sorriso falso.


   — Como assim? 


   Meu beck já era, o céu fica mais cinza e estou todo mole.


   — Você se importa. Se importa com as pessoas tristes. 



   Sorrio de verdade.


   — Parabéns pra você. — Ela sorri de verdade agora.


   — Obrigado.


   E ficamos quietos.


   Quietos.


   Quietos…





   — Moço? — Ela sussurra. 


   — Hm.


   — Eu não quero ter medo da vida.


   Não ouço mais nada. Nem mesmo minha voz quando respondo.


   — Você não vai.


   E ao perceber que não ouço mais nada, ela grita:


   — COMO SABE QUE NÃO TEREI MEDO DA VIDA?


   Bom, ao menos de uma coisa eu sei.



   — Porque você é forte. 


   — Não, eu nem como legumes.


   Sorrio.


   — É forte, sim. Ou vai ser. Eu tenho medo da vida. Porque eu sou fraco.


   — Fraco? Você?


   — Bastante.


   — Hm. Eu acho você bem forte.


   — Por quê?


   Ninguém nunca respondeu essa. É muito fácil afirmar algo sobre alguém sem conhecê-la. Mas quando questionado por que, não sabe dizer.


   — Porque mesmo com tanto medo, tantooooo medo. Depois de tanto medo, você tá vivo. Sabe, outros velhos fumantes já teriam infartado de tanto susto.


   Susto… Dou risada. Não é um medo de levar susto, mas tudo bem.


   — Moço, eu vou pra casa. Vou comprar uma água-viva pra você.


   — Tá. 


   — E remédios pra susto.


   — Tudo bem.


   Ela fica quieta. Depois levanta e vai embora.




   Acendo outro. Trago, seguro por mais de um minuto, e solto. 

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